Quebrando estigmas sobre favela, racismo e mercado de trabalho com Mateus Fernandes

Mateus Fernandes é um jovem de Guarulhos, mais especificamente do “fundão de GRU”. Sua vivência nas ruas da periferia da cidade trouxe a bagagem necessária para que ele perseguisse suas metas e, hoje, ele é uma das principais vozes a falar sobre favela, ESG e impacto social.

Conversamos com ele para entender mais profundamente a intersecção entre favela, cultura de rua, racismo e preconceito e mercado de trabalho.

Confira nosso papo:

Quem é Mateus Fernandes? Conta pra gente um pouco da sua trajetória e o que te impulsionou a ocupar os lugares que você transita hoje?

Antes de falar quem eu sou, sempre trago minha ancestralidade. Eu sou o Mateus Fernandes, filho da dona Keila, que é uma empregada doméstica, e do Marcelo, um homem que trabalhou muito tempo no campo, e veio para São Paulo. E os meus ancestrais, falando sobre a minha religião, sendo umbandista, filho de Iemanjá e Obaluaê. Sou um jovem periférico de Guarulhos, São Paulo, nascido e criado aqui nas periferias da região. 

Nasci num bairro chamado Santos Dummont. Como eu costumo falar, do fundão de GRU, um dos bairros mais distantes dos polos centrais. Minha trajetória começou na rua. Minha fala traz muito do meu aprendizado de rua, que me tornou o profissional que eu sou hoje, no sentido de entender meu propósito, entender consciência de diversidade também nesses territórios.

Eu sempre estive muito envolvido com pautas sociais, até como meio de sobrevivência. Estando na periferia, sempre tive uma educação muito voltada a receber ajuda, mas também pedir ajuda. Isso me deu um contexto social muito grande que me aproximou e me colocou à frente de projetos sociais em áreas como educação, moradia. Todo o meu trabalho parte desse lugar. Isso me levou a ocupar alguns espaços de destaque. Hoje, eu sou Top Voice Linkedin, um dos primeiros jovens a falar sobre favela na rede.

É um marco ter espaço para falar sobre toda minha trajetória de rua, de aprendizado, e conectar isso à diversidade e à inclusão, ocupando o mercado para levar informação sobre raça, classe, gênero. 


 

Uma grande parcela de pessoas ainda insiste em manter  uma imagem superficial e estereotipada da favela. Você trabalha ativamente para  desconstruir esses vieses com palestras e aulas, ocupando espaços como TED Talks e sendo um Top Voice no Linkedin. 

Como você vê o impacto desse posicionamento e qual é a recepção das pessoas em relação ao tema?

Eu falo sobre favela entendendo que ainda há um apartheid social no Brasil, a gente vê sintomas disso em relação aos acessos, à informação que chegam até aqui. Enquanto eu, Mateus, criador de conteúdo, falo sobre essa realidade é justamente para ecoar essa vivência, para que ela seja um incômodo quando pensamos em outras classes e outros ambientes. Eu falo de favela para quebrar estigmas como o da marginalização, mas também para melhorar nossa visibilidade enquanto povo. 

Falar sobre isso é importante porque a favela em si não é essa imagem que as pessoas construíram. Se fala muito que nós somos uma minoria, mas não, a gente é um povo minorizado. Eu parto do pressuposto de que somos mais de 16 milhões de pessoas que residem em situações periféricas, então, não, não somos minoria. Eu falo para quem não conhece essa realidade, mas falo também para quem me ouve, se identifica e se inspira, para que eles também possam falar de suas vivências, suas potências, partindo de um ponto não só de dor. 

A favela é, de fato, desigual, mas a gente tem muita beleza para mostrar e contar. Para uma palestra, seja uma escola ou uma empresa, eu sempre tento levar essa narrativa, ampliar a voz de quem não é ouvido, dos invisibilizados.  

Em um país no qual 16 milhões de pessoas vivem em favelas, o que é feito para garantir o acesso dessas pessoas ao mercado de trabalho?

Conversamos com a Juliana Kaiser há alguns meses, e ela desenvolve um projeto de mentoria para talentos negros, que muitas vezes vêm das periferias. Quão importante são ações como essas?

Quando a gente olha para projetos de capacitação é importante ver que é uma solução criada pelos nossos para os nossos. Isso já abre espaço para analisar a problemática da não inserção do povo periférico e das pessoas pretas no mercado de trabalho, que é estruturante do racismo em si. Muitas vezes a responsabilidade para resolver isso acaba caindo sobre nós. A negritude tem muito disso, de sempre levar mais um dos nossos. 

Eu acredito que o trabalho de pessoas como eu, como a Juliana, entre outras, serve de referência para muita gente. Aquela referência que não se encontrava quando uma pessoa da favela entrava em uma empresa e não sabia se portar. Hoje, eu fico pensando em várias coisas. Na minha trajetória, eu não sabia onde almoçar, como pegar o elevador correto, coisas simples com as quais eu estava tendo o primeiro contato. É um mundo totalmente diferente. 

O nosso trabalho é para que os nossos se sintam confortáveis e representados, mas também para que as lideranças, majoritariamente brancas, das organizações também se responsabilizem por esse acolhimento. Partir só da gente, às vezes, é um esforço muito grande. É uma provocação que eu sempre faço nas minhas falas: que as lideranças se sintam incomodadas em ver o nosso incômodo. Ver uma pessoa em uma situação de vulnerabilidade e entender a complexidade disso. 

Duas frases suas me chamaram a atenção: “Favela não precisa de salvação, precisa de oportunidades” e “Tem gente que olha para a inovação na favela e chama de gambiarra”.

O que é possível fazer para mudar esse estigma e mostrar que a favela também é um espaço para se descobrir talentos?

Quando eu penso nessa fala, de que a favela não precisa de salvação, mas de oportunidades, eu parto do pressuposto de que as soluções tradicionais não suportam os problemas sociais atuais. O povo favelado sobrevive há séculos com soluções que partem do contexto em que as pessoas vivem, muitas vezes de forma inovadora. Mas isso não é visto como inovação por vir de um corpos pretos, de corpos pobres. Dai, quem está fora olha e chama de gambiarra, mas o que é uma gambiarra se não uma nova tecnologia?

Hoje, as pessoas preferem acreditar no metaverso do que ajudar a combater a desigualdade.As periferias também estão criando novas tecnologias. Não tem nada mais afrofuturista do que a favela. Quando a gente pensa em código, em comunicação, em formação de povo, não é só sobre passado, mas sobre futuro que estamos falando. A favela faz tudo o que faz com pouco, mas imagina se tivéssemos recursos e apoio das organizações. Existem projetos periféricos que já estão construindo algo muito grande, que podem transformar a vida de um território, por que não apoiá-los em vez de começar algo do zero? 

Eu penso muito nisso enquanto inovação, enquanto forma de transformar esse território. É um ambiente de talentos, talentos que precisam de oportunidades. A sede de vencer é muito grande. 

Você fala muito sobre música e sobre como o rap e o funk ajudaram a moldar sua visão sobre o mundo. Ao mesmo tempo, existe uma visão conservadora e preconceituosa quanto a esses estilos.

De que maneira a música, sobretudo nesses gêneros, pode impulsionar as pessoas a crescerem tanto pessoal quanto profissionalmente?

Racionais MC’s, um dos maiores grupos de rap do Brasil, teve um de seus álbuns como obra obrigatória no vestibular da Unicamp. (Crédito: Mumu Silva)

A primeira coisa que chegou na minha favela não foi um livro, foi um CD do Racionais. Tanto o rap quanto o funk foram uma escola para muitos de nós. Nosso primeiro contato com sociologia,  com um conhecimento que é tão acadêmico quanto outro qualquer. A música, a arte como um todo, tem um papel educacional, de conscientização e de transformação. O rap e o funk moldaram o profissional que eu sou hoje e, mesmo tendo passado pela universidade, a música foi o que me deu mais ensinamentos. 

Diversidade, gênero e inclusão são temas atuais, mas o movimento do rap e do funk já falam sobre isso há gerações. É importante ver que a música e a arte se comunicam com a periferia. Pode ter certeza de que um álbum do Racionais vai chegar onde um livro não chega porque a arte comunica diretamente com o nosso público. É uma estratégia para falar com as pessoas, para chegar na periferia. 

É triste que haja uma visão conservadora e preconceituosa sobre isso. São pessoas pretas, faveladas, falando sobre as nossas vivências. Por que isso é tão incômodo para outras pessoas? Poderia ser uma oportunidade de tentar entender algo que elas não vivem. Ver “Sobrevivendo no Inferno” como obra obrigatória na Unicamp, um dos vestibulares mais disputados, mostra que a nossa vivência enquanto povo favelado importa e serve para transformar indivíduos.

O preconceito, o racismo e a discriminação ainda são realidades no Brasil, mas a movimentação no sentido oposto existe e cresce a cada dia. Do seu ponto de vista, quão efetiva vem sendo essa luta por  inclusão e oportunidade dignas no mercado de trabalho?

Apesar do Brasil pesquisar muito sobre racismo em si, o país ainda tem toda a sua estrutura racial muito problematizada. Enquanto 56% da população se declara preta ou parda, apenas 4% dessa população negra está em cargos de liderança, de acordo com dados do Instituto Ethos. É problemático porque a gente não consegue ver os nossos sendo representados. 

Porém, quando olhamos para o cenário do empreendedorismo, 51% da população negra empreende. Enquanto pessoas que sofrem no mercado de trabalho, a gente busca outros meios para sobreviver com o próprio negócio. Mas, ainda assim, esses 51% também sofrem porque o mercado é muito diferente para pessoas brancas. 

É preciso que a população preta, periférica, esteja em cargos de liderança para que haja uma mudança estrutural. Não é só criar processos seletivos para cargos de entrada sendo que não há projeção de mudança social e estrutural. Enquanto pessoa preta, eu sinto que a gente precisa se mostrar a cada dia melhor que outras pessoas. Racionais fala sobre isso: como eu vou correr atrás de algo sendo que eu já nasci 100 anos atrasado? 

Essa ideia de corrida também prejudica a nossa saúde mental. A gente precisa achar um meio para chegar no topo, mas a que custo? As empresas precisam olhar para isso, é um problema a ser resolvido. O racismo é algo que precisa ser resolvido pelos brancos, não por nós. Se todos têm acesso, resta entender como transformar em ação. 

Se é complexo ter pessoas negras na liderança, quais são as travas da sua organização que impedem que meu povo entre? Quais são os seus processos e as suas políticas? O que precisa mudar para que aquele ambiente seja um meio de entrada e não uma porta fechada?



 
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